O Lobo e o Chibinho, recolha de Baltasar Lopes

O LOBO E O CHIBINHO
(Cabo Verde)
 
Houve grande seca naquele ano. Nos campos não havia nem fio de palha para as alimárias. Ti’lobo andava muito magro, de corpo relampiado, e sem gosto nenhum na vida. Girava de campo em campo, à procura de qualquer coisa para lhe aguentar a debilidade, mas nada havia de subsistência para o seu estômago de comilão. Certo dia, já farto de andar, foi parar a uma fonte, a ver se por acaso encontraria por lá alguma Chibarrinha perdida da mãe. Deu logo de cara com Compadre Chibinho, que estava muito pachá a gozar a sombra de uma empena de barranco. Ti’Lobo arregalou os olhos. É que Compadre Chibinho estava gordo, bonito, tinha mesmo ar de quem tinha comida boa para encher as tripas do corpo. E Ti’Lobo disse:
– Bi, Compadre Chibinho! Você está gordo, Deus o guarde!
– Assim, assim, Ti’Lobo, o suficiente para safar este tempo de carestia…
– Não, Compadre Chibinho, você tem comido em caldeira fina. Veja como estou. As minhas costelas parecem cordas de violão. Venha tocar lundû, Compadre…
Chibinho viu logo que Ti’Lobo queria era puxar conversa e saber onde é que ele comia. Mas Compadre Chibinho era esperto, e sabia que Ti’Lobo tinha muita mofineza no corpo. Pensou na sua cabeça que boca é arma de fogo. Fingiu não entender a intenção de Ti’Lobo, e fez uma grande bordada na conversa.
– Ti’Lobo, há muito tempo que eu não via você…
– Eh, Ti’Lobo, você lembra-se dos sete filhos de cabra-gazela que você comeu?
Mas Ti’Lobo tinha os olhos arregalados para a boniteza de Compadre Chibinho. Por fim, Chibinho viu tanta fome nos olhos de Ti’Lobo, viu-o tão coitadinho que teve dor dele. E Chibinho disse a Ti’Lobo:
– Eu digo onde é que ando a comer, mas você tem de me jurar que há-de fazer o que faço quando vou contentar o estômago.
Ti’Lobo jurou tudo o que Chibinho quis. E Compadre Chibinho disse que costumava comer numa figueira que ficava em tal lugar.
Mas recomendou logo:
– Quando você tiver gadanhado no pé de figueira você diz: figueirinha, tic, tic, e a figueirinha sobe; quando você estiver farto e quiser descer, você diz: figueirinha nãi, nãi, e ela desce.
Ti’Lobo enfiou logo feito um barbatão para o pé de figueira. Assim que ele gadanhou, disse:
– Figueirinha tic, tic!
A figueirinha subiu muito alto e Ti’Lobo comeu, comeu, até ficar farto.
Lembrou-se de que já podia descer, mas pensou na sua cabeça:
– Ainda não comi para mim, quanto mais para meu pai…
Continuou a comer, a comer, até que novamente cuidou que era tempo de descer.
Mas disse:
– Ainda não comi para meu pai, quanto mais para minha mãe…
E continuou a comer. Comeu para a mãe, para o avô, para a avô e para todos os seus parentes. Quando já não tinha mais parentes, resolveu descer.

Mas na dogadura de comida que ele apanhou, esqueceu-se do que é que devia dizer para a figueirinha descer: se tic, tic, se nãi, nãi. À toa disse:
– Figueirinha tic, tic! A figueira subiu. Mas Ti’Lobo era testudo e tornou a dizer:
– Figueirinha, tic, tic!
A figueirinha continuou a subir. Ti’Lobo ficou cego de raiva por ver a figueira subir:
– Mas vocês estão a ver uma figueirinha teimosa!
E então, completamente doido, ele batia grandes palmadas nas ramas e gritava:
– Figueirinha, tic, tic! É contigo que estou falando figueirinha! Figueirinha, tic, tic!
A figueira subiu, subiu até que chegou ao céu. Quando Nossenhor viu Ti’Lobo, disse-lhe:
– Bi, Ti’Lobo! O que é que vens fazer ao céu?
Ti’Lobo arranjou logo uma grande mentira, em que ele mentia as fomes que tinha passado. Como viu uma pelinha muito bonita que estava estendida, Ti’Lobo disse em voz chorosa a Nossenhor que ainda estava em jejuminho natural.
Porém, Nossenhor disse-lhe:
– Mentira, Ti’Lobo! Tu estás más é farto de comer figos.
Ti’Lobo quis negar, mas Nossenhor disse-lhe que arreganhasse a boca. Ti’Lobo arreganhou a boca, e ficaram à mostra os dentes, todos sujos de restos dos figos que ele tinha comido.
– Tu és muito mentiroso, Ti’Lobo!
Nossenhor, na sua bondade, teve grande dor de Ti’Lobo e disse-lhe:
– Vou-te mandar novamente para a terra. Mas antes tens de ir lavar esta pelinha, para te mandar fazer tambor. Quando estiveres na terra podes ganhar a tua vida tocando o tamborinho.
Nossenhor deu a pele a Ti’Lobo e disse-lhe que a fosse lavar numa ribeira. Ti’Lobo foi, lavou a pele, porém quando ela estava já lavada, sentiu manha dela e disse:
– Pelinha, tu cheiras-me bem, eu como-te! E comeu a pele. Quando chegou à presença de Nossenhor, arranjou uma grande mentira e disse que a correnteza tinha levado a pele.
– Não vê que a ribeira está braba e Ti’Lobo está com o corpo muito debilitado.
Nossenhor deu-lhe outra pele, porém novamente Ti’Lobo sentiu manha da pele e disse:
– Pelinha, tu cheiras-me bem, eu como-te! Nossenhor tornou a dar-lhe outra pele, e disse-lhe que se ele a comesse o meteria dentro de um saco.
Ti’Lobo, desta vez, levou a pele muito bem lavada. Nossenhor mandou fazer o tambor e quando ficou pronto disse a Ti’Lobo:
– Ti’Lobo, agora vais descendo o caminho para a terra e levas este tamborinho. Quando chegares lá em baixo tocas o tambor e eu então, vendo que chegaste, largarei a corda com que te vou prender pela cintura. Mas tem cuidado e não toques o tambor pelo caminho, porque, se eu ouvir o toque, faço de conta que chegaste e largarei a corda e tu darás uma grande queda que te matará.
Ti’Lobo saiu do céu e veio descendo. Quando já estava a meia ladeira encontrou uma mulher que levava uma travessa cheia de batancas.
A mulher disse-lhe:
– Ti’Lobo, que tamborinho tão bonito que você está levando!
Ti’Lobo ficou todo vaidoso e arrotou três vezes. A mulher tornou a dizer-lhe.
– Ti’Lobo, você toque um bocadinho, porque deve ser muito doce o toque do seu tamborinho…
– Não! Nossenhor disse-me para eu tocar só quando chegar lá em baixo…
Ti’Lobo não queria tocar, porque estava com medo de cair. Por fim, a mulher disse-lhe:
– Ti’Lobo, se você tocar o tamborinho, eu dou-lhe estas batancas para você comer…
– Nossenhor disse-me para eu tocar só quando eu chegar lá em baixo…
– Mas, oh Ti’Lobo, eu dou-lhe todas as batancas…
– Só se eu tocar devagarinho, de modo que Nossenhor não ouça…
– Exacto e qual, Ti’Lobo! De mais a mais, Compadre Chibinho disse que você é um grande artista e você toca tão doce que mesmo que Nossenhor ouça fica contente e não lhe faz mal…
– Ti’Lobo ficou ainda mais vaidoso e arrotou três vezes. Arregalou os olhos e perguntou:
– Achas, oh comadre. Você dá-me as batanças deveras? Tudo para a barriguinha de Ti’Lobo?
– Deveras, deveras! Tudo para a sua barriguinha, Compadre…
– Ti’Lobo comeu as batancas, e depois compôs o tamborinho e tocou.
Quando Nossenhor ouviu o toque do tambor, fez de conta que Ti’Lobo já tinha chegado à terra e largou a corda que o sustinha pela cintura. Imediatamente Ti’Lobo deu um grande trambolhão e, caindo daquelas alturas para a terra, ficou em pedaços. Mas um instante antes de tocar no chão, viu Compadre Chibinho, que o espiava de um lajedo, e gritou-lhe.
– Bi, Compadre Chibinho! Você não disse que eu sou um grande artista?
 
Baltazar Lopes, "Conto Popular de S. Nicolau: O Lobo e o Chibinho", in Claridade, Praia, 1936, nº. 2, p. 8 e 10.

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